domingo, outubro 06, 2013

Fuga do Congo

A morte na semana passada de pelo menos 111 refugiados africanos, que se lançaram ao mar rumo a uma vida melhor e naufragaram no sul da Itália, é uma história que se repete com previsibilidade abismal. Tão previsível quanto o pranto do papa, a indignação da comunidade de direitos humanos e - passado o baque inicial - a indiferença de todo o restante.
São 31 mil os imigrantes ilegais que aportaram apenas na Itália neste ano, metade dos quais será devolvida aos países de origem. E são eles, por vivos, os sortudos. Por pouco, a história de Ornela Mbenga poderia ter acabado assim. Mas porque Deus é africano, com salvo-conduto brasileiro, também, o desfecho da sua passagem pelo inferno da migração forçada ainda está para ser escrito.
De relance, a congolesa de 23 anos e risada franca dificilmente encaixa-se no perfil de vítima. Sociável e poliglota, com poucos meses do Brasil ela conseguiu moradia e emprego de recepcionista no Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas para chegar até aqui, teve de driblar o diabo.
Nascida em Walikale, no leste da República Democrática do Congo, Ornela levava uma vida confortável de classe média. Seu pai dava aula de matemática enquanto a mãe cuidava da casa e das duas irmãs menores. Ornela cursava jornalismo e trabalhava na recepção de um banco. Uma vida boa apesar da guerra civil que fervia no país havia duas décadas.
Sua vida mudou numa manhã de 2011, quando a guerrilha invadiu a cidade. No banco, Ornela, demorou para perceber a confusão. Os estampidos de tiros eventuais faziam parte da vida naquele naco do país, disputado palmo a palmo pela tropa do presidente Joseph Kabila e a milícia de etnia hutu, que tem laços ao massacre genocida da vizinha, Ruanda. Ornela só entendeu o perigo naquela tarde quando viu sua casa em chamas, seu bairro saqueado e seus vizinhos em fuga. Ornela seguiu o êxodo, com a roupa no corpo e o equivalente a R$ 200 no bolso. Não viu mais sua família, que ela supunha ter sido morta no assalto. Por duas semanas, conseguiu esquivar-se da guerrilha, certa vez se jogando no chão e sujando-se de sangue de um morto para despistar os algozes. Desamparada, acabou capturada e levada a um campo rebelde na Tanzânia, onde trabalhou carregando água sob mira de fuzil.
Num país de 3 milhões de refugiados, a narrativa é familiar. Surpreendente foi a guinada que seu enredo tomou. No vai e vem do poço de água, Ornela conheceu um pescador, que se comoveu com sua história e arquitetou sua fuga. Uma noite, ela pulou o muro do acampamento e correu até o porto, onde um marujo amigo escondeu-a no porão de um cargueiro. Lá ficou, no compartimento de lixo, com uma prece na cabeça e um saco de amendoim na mão, sem saber para onde iria.
Duas semanas depois, o navio atracou em Santos. Ornela reconheceu a língua - sua família vivera um ano em Angola - e pediu ajuda. O dono de um bar alimentou-a e chamou um universitário angolano, que a acolheu. Semanas depois, Ornela chegou ao Rio e, pouco depois, conseguiu a vaga no Parque Tecnológico.
Os "anjos da guarda" que a ajudaram na fuga ficaram para trás. As surpresas, não. Um dia, de plantão, o telefone tocou e ao escutar as primeiras sílabas chiadas - "minha filha?" - Ornela caiu em prantos. Sua mãe estava viva e achou-a por meio de um tio, que esbarrara na sua página no Facebook.
Hoje, Ornela economiza para poder reencontrar-se com sua família, que emigrou para os Estados Unidos pelo Senegal. No Vakinha, site de doações entre amigos, ela pede ajuda para comprar uma passagem para Chicago. Nada demais, é só mais uma história de refugiada - só que contada desta vez na primeira pessoa.
06/10/2013

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