sexta-feira, fevereiro 20, 2015

A FICÇÃO E A REALIDADE DA AGUA E SEU USO


Portaria do Ministério da Saúde estabelece condições de abastecimento que não existem na vida cotidiana

A crise no abastecimento de água potável em São Paulo ˗˗ com possibilidade de interrupção no fornecimento num sistema de dois dias de abastecimento por outros quatro de torneiras secas ˗˗ expõe contradições previstas em legislação federal e que até agora não foi considerada, como se fosse mera peça de ficção.
Trata-se da portaria 2914 do Ministério da Saúde de 12 de dezembro de 2011, publicada no Diário Oficial da União em 14 de dezembro de 2011.
O que dizem as 30 páginas da portaria, que inclui um conjunto de tabelas de conteúdo técnico relativo, por exemplo, ao padrão de potabilidade para substâncias químicas que representam riscos à saúde?
Em síntese, aponta que as pessoas que estão improvisando coleta de água de chuva para se prevenir de um recrudescimento da crise de abastecimento estão sujeitas, por exemplo, a penalidades previstas na Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977 “sem prejuízo das sanções de natureza civil ou penal cabíveis”.
Essa situação, no cotidiano, configura o que ironiza o ditado popular: “se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come”.
A portaria do Ministério da Saúde, que disciplina atribuições em escalas estadual e municipal, prevê, por exemplo, no artigo 4º que “toda água destinada ao consumo proveniente de solução alternativa individual de abastecimento de água, independentemente da forma de acesso da população, está sujeita à vigilância da qualidade da água”.
Essa é, evidentemente, uma previsão desejável, no sentido de assegurar um padrão básico de qualidade e assim proteger a saúde pública.
Mas, observada no cotidiano, é pura peça de ficção.
Em regiões do nordeste brasileiro, por exemplo, em que a população se abastece de poços, partilhando a água com animais, e destituída de qualquer tratamento, está a negação veemente da formalidade legal.
Estima-se em 30 mil mortes diárias em todo o mundo provocadas pelo consumo de água não adequada para o consumo humano e a maioria dessas vítimas são crianças, a maior parte das classes sociais mais pobres, vítimas especialmente de diarreias infecciosas, mas também de cólera, leptospirose, hepatite e esquistossomose.
No Brasil, mais de 3 milhões de famílias não dispõem de água tratada e algo em torno de 7,5 milhões de moradias não dispõem de rede de esgotos.
A portaria 2914 do Ministério da Saúde prevê, no seu parágrafo único, que “A autoridade municipal de saúde pública não autorizará o fornecimento de água para consumo humano por meio de solução alternativa coletiva quando houver rede de distribuição de água, exceto em situação de emergência e intermitência”.
A questão é que, ao menos até agora, essa caracterização “emergência e intermitência”, foi devidamente caracterizada.

Daí a prevalência do paradoxo: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

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